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Entrevista a Valter Hugo Mãe

Valter Hugo Mãe esteve presente no ciclo “Encontro com Autores”, promovido pela Associação Beneficência de Vila Meã. O encontro decorreu no Cineteatro Raimundo Magalhães e o Jornal de Vila Meã esteve à conversa com o autor.

Jornal de Vila Meã (JVM) - Quem é Valter Hugo Mãe? Valter Hugo Mãe (VHM) - Um escritor à procura do seu livro definitivo, um livro que seja tão satisfatório que possa resolver todos os problemas da vida. Presumo que nunca o encontrarei, mas é o que me compete fazer... procurar.

JVM - Ainda não perdeu a esperança de o encontrar, como é evidente? VHM - Não, é exatamente com essa utopia que eu acho que se faz a arte. Não se faz a arte por coisas muito possíveis, provavelmente faz-se tentando mirar o impossível.

JVM - E cada livro é então um passo na busca desse livro ideal, do livro que explique a vida? VHM - Sim, cada livro é uma tentativa de chegar mais perto de uma resposta absoluta, como se estivéssemos a tentar a pronúncia de Deus, como se houvesse uma capacidade de fazer Deus falar ou até de inventar Deus, como se o livro, ele próprio, pudesse colmatar esta aflição de estarmos ao abandono... por isso os livros têm essa função que pode passar perto da loucura, mas, para mim, não é senão a lucidez profunda, a de tentar fazer com que a vida tenha um fundamento profundo, significativo e absolutamente claro.

JVM - A escrita é uma arte nobre, como muitos autores consideraram e também considera certamente. Acha que qualquer tipo de arte é essa tentativa de encontrar o impossível ou encontrar a realização do Homem? VHM - Sim, eu acho que todas as artes, até mesmo alguma criatividade que vemos como do foro da simples decoração acontece porque procuramos essa espécie de dimensão sublime como se, de facto, habitássemos um mundo onde Deus existe, como se nos competisse preparar o mundo para que Deus nos visite e se manifeste; para mim, é muito claro que a arte tem a ver com uma transcendência do indivíduo não no sentido tradicional, religioso do termo, mas no sentido de haver uma mística própria na arte que tem a ver com a superação do indivíduo, da evidência mais imediata dos indivíduos; e mesmo quando adornamos a casa com flores, quando expomos uma renda em cima duma mesa, de alguma forma, preparamos o mundo para Deus, para essa espécie de Super-Consciência ou de Consciência. A arte tem sempre esta aspiração ao impossível e todas as formas de criação são modos de dignificar o mundo, honrar a celebrar o mundo para que ele possa estar ao nível duma maior aventura.

JVM - Sendo assim, depreendo que defende que cada indivíduo tem em si uma Centelha Divina. VHM - Cada indivíduo tem em si uma Centelha Divina e por isso todos os indivíduos são artistas. Talvez o artista seja um indivíduo que desinibiu essa sua dimensão transcendente de superação a si próprio. O artista lida todos os dias com a necessidade de se superar, de criar algo muito maior do que ele próprio.

JVM - Fale-nos um pouco deste livro. VHM - Este livro é feito a partir doutros livros. O livro publicação da mortalidade é uma súmula da minha poesia, uma escolha da minha poesia que parece eliminar o que está para trás, ou seja, é uma versão ratificada e todos os poemas e versos que não fazem parte deste volume estão como que renegados; não é possível deitá-los fora porque já foram publicados e estão nas bibliotecas de muitas pessoas e não os posso rasurar. Este livro é como a versão madura da minha poesia atempada com a minha maturidade hoje. Gostaria que as pessoas esquecessem os livros anteriores e versões anteriores e pudessem apenas frequentar as novas versões. Ele é composto por uma revisão dos poemas antigos, dos poemas prévios e por uma parte de poemas inéditos, expostos pela primeira vez com esta publicação.

JVM - Então a poesia não é algo estático. Plasmada no texto, continua no entanto viva, daí sinta necessidade de novas versões. VHM - Sim, há vários poetas que mexeram nos poemas continuamente. Para mim, é algo natural e importante. Renegando os poemas não estou a ofendê-los, eles existem, estão salvos de alguma forma, ninguém precisa de ter pena deles, eles não falecem. O que acontece é que proponho uma nova versão que me parece mais madura. A vida vai passando e nós vamos criando convicções distintas que nos permitem fazer leituras de quem somos enquanto autores, enquanto poetas e mais precisas, com outro rigor. Quando somos miúdos, vemos as coisas a partir do sonho e ele é um pouco impreciso e quando realizamos os sonhos notamos que muitas vezes falta algo ou é muito mais do que podíamos prever. O sonho, sendo fundamental na vida de todas as pessoas, é uma profunda imprecisão, e quando se torna real pode ser verificado no concreto com mais rigor. Os poemas são sujeitos a isso. Foram sonhados, consumaram-se e são passíveis de uma análise com outro rigor. Há uma relação permissiva. Enquanto eu ou o leitor não acabarmos, o poema não acaba e o leitor poderá provavelmente, em sua casa, fazer as suas próprias versões e edições que quiser e colocar palavras como bem entender.

JVM - Já o mesmo não acontecerá com os romances, são mais estáticos, menos permissivos, digamos assim. VHM - Ainda assim o António Lobo Antunes fez revisões da sua obra dos últimos anos, em alguns casos drásticas, criando por exemplo a expressão “ne varietur” considerando que esta versão é a definitiva. Não quer dizer que os romances não possam estar inseridos nesta lógica, mas são estruturas muito mais bastas, que levam anos de oficina e normalmente fico obcecado com a oficina de um novo romance e rever os meus romances à sua reedição seria insuportável, não poderia escrever nada de novo, e talvez eles sejam mais abandonados pelo autor. Os poemas são “organismos que nos acompanham”, estão mais presentes.

JVM - Considera que abandona os livros? Eu, como autora, às vezes tenho aquela perceção de que aquele livro está um bocadinho abandonado na minha vida. Já teve essa perceção? VHM - Talvez não tanto nesse sentido. Eu acho é que o livro me abandona a mim, eu é que fico de fora do livro e ele deixa de precisar de mim e isso é porque ele se distancia e se impôs e a nossa relação não fazia mais sentido. Às vezes certos livros parecem confundir-se com o nosso passado, tingem o tempo da nossa vida e acabam por ter um significado biográfico independentemente do que relatam, da factualidade que contêm. Eles são do foro da nossa biografia, lembrar-me deles é lembrar-me de quem fui, do tempo em que os escrevi, do que me aconteceu, do país que tínhamos, do mundo que tínhamos. Cada livro é uma visão contaminada pelo seu próprio tempo, que é o meu tempo, um instante da minha idade. Por isso uns estão mais próximos do que outros, conforme o significado que têm.

JVM - José Saramago diz que o escritor apenas conta histórias. Concorda? Também gosta de contar histórias? VHM - A função narrativa de produzir uma explicação é necessária e definidora da Humanidade. Nós não somos só animais a quem acontecem coisas, somos animais que necessitam de explicar as coisas que nos acontecem. As histórias humanizam-nos e a literatura faz de nós melhores pessoas.

JVM - E o próximo livro? Há sempre um próximo livro? VHM - A sensação de um dia não haver é-me angustiante. O haver um próximo livro cria-me a sensação de continuar vivo.

JVM - Muito obrigada. Em nome dos leitores, do Jornal de Vila Meã e da Associação de Beneficência.


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