"Continuo a pensar que a poesia faz parte da essência do homem"
Continuo a pensar que a poesia faz parte da essência do homem. Também as histórias, ao longo da sua permanência na terra e desde tempos imemoriais, alimentaram a sua fome de aventura e de saber e graças a elas foi abandonando a animalidade, pois algo mais passou a fazer parte da sua vida, além da luta constante pela sobrevivência. Em suma, as histórias humanizaram o homem, aproximaram-no não só do social, mas também dele mesmo. Os livros ainda são hoje instrumento cimeiro de registo dessas histórias, embora em tempos idos se tivesse utilizado o papiro, o pergaminho, e até mesmo os lajotes de argila e as rochas das cavernas, onde os nossos primitivos desenhavam animais e acontecimentos do seu dia-a-dia que eram obviamente a história das suas simples vidas (a arte não tem apenas um fim estético, é também claramente didático e moral). Refira-se, a propósito, e apenas a título de exemplo, a tão célebre contadora de histórias, Scherazade, na série de contos, As Mil e Uma Noites, que conseguiu, com extraordinária mestria e através das sequências narrativas, demover o rei do seu cruel propósito: degolar todas as noites uma esposa. Em muitas civilizações, contar histórias ainda constituiu um símbolo de união e de ligação entre os seus elementos, um momento único de partilha e de elevação. Recordo sempre com muita saudade e carinho as noites de estio, nas escadas da minha casa, onde se juntavam os vizinhos mais próximos para ouvir a minha avozinha contar histórias (muitas delas eram tão terríveis e assustadoras que me mantinham de olhos abertos grande parte da noite, com receio de que algumas das personagens adquirissem vida e surgissem diante de mim). Talvez porque se celebrou no dia 1 de junho o Dia Mundial da Criança, e as crianças são as destinatárias privilegiadas, apetece-me contar-vos uma história. Pequena e singela. Peço apenas que a leiam com muita atenção, para poderem descobrir, no final, a moral implícita. No cimo de um monte, havia um mosteiro onde vivia um monge com os seus discípulos. Passavam o dia a orar. Sobreviviam com as ofertas dos agricultores que ocupavam o vale, pois estes acreditavam, inicialmente, que a fartura dos seus campos se devia às orações dos monges. Porém, bastou que alguém falasse na inatividade dos monges para que o fantasma da ingratidão começasse a crescer e, pouco a pouco, as ofertas foram escasseando até desaparecerem por completo. Um dia, incapazes já de suportar a fome, os discípulos resolverem falar com o Mestre. Tinham encontrado uma solução: ir pela calada da noite ao celeiro da aldeia e trazer algum alimento, ninguém os veria, argumentavam eles; e se posteriormente se apercebessem do sucedido, iriam perdoar-lhes, não lhes faria falta; doutra forma, morreriam. O mestre pensou, pensou e acabou por aceder, embora contrafeito. E assim aconteceu. Os discípulos tinham partido há pouco tempo e o Mestre estava em silêncio a orar, quando, de súbito, se apercebeu de uns pequenos ruídos atrás de uma cortina. Ligeiramente assustado, perguntou: - Quem está aí? Foi então que um discípulo saiu timidamente da escuridão e respondeu: - Sou eu, Mestre. - Por que razão não foste com os outros, meu filho? - Perdoai, Mestre, não pude ir; a minha alma não dorme, está sempre atenta e nunca me perdoaria.